Florbela Espanca ( 1894 – 1930 )
TÉDIOPasso pálida e triste. Oiço dizer:
“Que branca que ela é! Parece morta!”
E eu que vou sonhando, vaga, absorta,
Não tenho um gesto, ou um olhar sequer…
Que diga o mundo e a gente o que quiser!
– O que é que isso me faz? O que me importa?…
O frio que trago dentro gela e corta
Tudo que é sonho e graça na mulher!
O que é que me importa?! Essa tristeza
É menos dor intensa que frieza,
É um tédio profundo viver!
E é tudo sempre o mesmo, eternamente…
O mesmo lago plácido, dormente…
E os dias, sempre os mesmos, a correr…
Languidez
Fecho as pбlpebras roxas, quase pretas,
Que poisam sobre duas violetas,
Asas leves cansadas de voar…
E a minha boca tem uns beijos mudos…
E as minhas mгos, uns pбlidos veludos,
Traзam gestos de sonho pelo ar…
Fanatismo
Minh’alma, de sonhar-te, anda perdida.
Meus olhos andam cegos de te ver!
Nгo йs sequer razгo do meu viver
Pois que tu йs jб toda a minha vida!
…
E, olhos postos em ti, digo de rastros:
«Ah! Podem voar mundos, morrer astros,
Que tu йs como Deus: Princнpio e Fim!…»
Fumo
Longe de ti sгo ermos os caminhos,
Longe de ti nгo hб luar nem rosas;
Longe de ti hб noites silenciosas,
Hб dias sem calor, beirais sem ninhos!
O nosso mundo
Que importa o mundo e as ilusхes defuntas?…
Que importa o mundo seus orgulhos vгos?…
O mundo, Amor?… As nossas bocas juntas!…
Nгo ser
Ah! arrancar аs carnes laceradas
Seu mнsero segredo de consciкncia!
Ah! poder ser apenas florescкncia
De astros em puras noites deslumbradas!
Ser nostбlgico choupo ao entardecer,
De ramos graves, plбcidos, absortos
Na mбgica tarefa de viver!
…
Quem nos deu asas para andar de rastos?
Quem nos deu olhos para ver os astros
– Sem nos dar braзos para os alcanзar?!…
Em ti o meu olhar fez-se alvorada,
E a minha voz fez-se gorgeio de ninho,
E a minha rubra boca apaixonada
Teve a frescura do linho
Aqueles que me tкm muito amor
Nгo sabem o que sinto e o que sou…
Nгo sabem que passou, um dia, a Dor
А minha porta e, nesse dia, entrou.
E й desde entгo que eu sinto este pavor,
Este frio que anda em mim, e que gelou
O que de bom me deu Nosso Senhor!
Se eu nem sei por onde ando e onde vou!!
Sinto os passos de Dor, essa cadкncia
Que й jб tortura infinda, que й demкncia!
Que й jб vontade doida de gritar!
E й sempre a mesma mбgoa, o mesmo tйdio,
A mesma angъstia funda, sem remйdio,
Andando atrбs de mim, sem me largar!
Os versos que te fiz
Deixe dizer-te os lindos versos raros
Que a minha boca tem pra te dizer !
Sгo talhados em mбrmore de Paros
Cinzelados por mim pra te oferecer.
Tem dolencia de veludo caros,
Sгo como sedas pбlidas a arder…
Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que foram feitos pra te endoidecer !
Mas, meu Amor, eu nгo te digo ainda…
Que a boca da mulher й sempre linda
Se dentro guarda um verso que nгo diz !
Amo-te tanto ! E nunca te beijei…
E nesse beijo, Amor, que eu te nгo dei
Guardo os versos mais lindos que te fiz.
Beija-mas bem!… Que fantasia louca
Guardar assim, fechados, nestas mгos,
Os beijos que sonhei pra minha boca!…
Ser poeta й ser mais alto, й ser maior
Do que os homens! Morder como quem beija!
Й ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Aquйm e de Alйm Dor!
Й ter de mil desejos o esplendor
E nгo saber sequer que se deseja!
Й ter cб dentro um astro que flameja,
Й ter garras e asas de condor!
Й ter fome, й ter sede de Infinito!
Por elmo, as manhгs de oiro e de cetim…
Й condensar o mundo num sу grito!
E й amar-te, assim, perdidamente…
Й seres alma, e sangue, e vida em mim
E dizк-lo cantando a toda a gente!
Noivado Estranho
O luar branco, um riso de Jesus,
Inunda a minha rua toda inteira,
E a Noite é uma flor de laranjeira
A sacudir as pétalas de luz…
A luar é uma lenda de balada
Das que avozinhas contam à lareira,
E a Noite é uma flor de laranjeira
Que jaz na minha rua desfolhada…
O Luar vem cansado, vem de longe,
Vem casar-se co´a Terra, a feiticeira
Que enlouqueceu d´amor o pobre monge…
O luar empalidece de cansado…
E a noite é uma flor de laranjeira
A perfumar o místico noivado!…
Florbela Espanca – Trocando olhares – 30/04/1917
Cegueira Bendita
Ando perdida nestes sonhos verdes
De ter nascido e não saber quem sou,
Ando ceguinha a tatear paredes
E nem ao menos sei quem me cegou!
Não vejo nada, tudo é morto e vago…
E a minha alma cega, ao abandono
Faz-me lembrar o nenúfar dum lago
´Stendendo as asas brancas cor do sonho…
Ter dentro d´alma na luz de todo o mundo
E não ver nada nesse mar sem fundo,
Poetas meus irmãos, que triste sorte!…
E chamam-nos a nós Iluminados!
Pobres cegos sem culpas, sem pecados,
A sofrer pelos outros té à morte!
Florbela Espanca – Trocando olhares – 24/04/1917
Maior Tortura
Na vida, para mim, não há deleite.
Ando a chorar convulsa noite,
E não tenho nem sombra em que me acoite,
E não tenho uma pedra em que me deite!
Ah! Toda eu sou sombras, sou espaços!
Perco-me em mim na dor de ter vivido!
E não tenho a doçura duns abraços
Que me façam sorrir de ter nascido!
Sou como tu um cardo desprezado
A urze que se pisa sob os pés,
Sou como tu um riso desgraçado!
Mas a minha Tortura inda é maior:
Não ser poeta assim como tu és
Para concretizar a minha Dor!
Florbela Espanca – Trocando olhares
* Como o mesmo título de “A Maior Tortura”, e dedicado “A um grande poeta de Portugal”, este soneto comparece refundido em Livro de Mágoas.
A um livro
No silêncio de cinzas do meu Ser
Agita-se uma sombra de cipreste,
É uma sombra triste que ando a ler,
No livro cheio de mágoa que me deste!
Estranho livro aquele igual a mim!
Cheira a mortos a rir e a cantar…
É dum branco sinistro de jasmim.
Que só me dá vontade de chorar!
Parece que folheio toda a minh´alma!
O livro que me deste, em mim salma
As orações que choro e rio e canto!
Poeta igual a mim, ai quem me dera
Dizer que tu dizes! Quem soubera
Velar a minha Dor desse teu manto!
Florbela Espanca – Trocando olhares
* Como o mesmo título, este soneto alcança sua versão definitiva no Livro de Mágoas.
Desalento
Às vezes oiço rir, é ’ma agonia
Queima-me a alma como estranha brasa
Tenho ódio à luz e tenho raiva ao dia
Que me põe n’alma o fogo que m’abrasa!
Tenho sede d’amar a humanidade…
Eu ando embriagada… entontecida…
O roxo de maus lábios é saudade
Duns beijos que me deram n’outra vida!
Ei não gosto do Sol, eu tenho medo
Que me vejam nos olhos o segredo
Que só saber chorar, de ser assim…
Gosto da noite, imensa, triste, preta,
Como esta estranha e doida borboleta
Que eu sinto sempre a voltejar em mim!
Florbela Espanca – Trocando olhares
* Uma vez refundido, este “Desalento” ganha o título de “A minha Tragédia” em Livro de Mágoas.
Só
Eu tenho pena da Lua!
Tanta pena, coitadinha,
Quando tão branca, na rua
A vejo chorar sozinha!…
As rosas nas alamedas,
E os lilases cor da neve
Confidenciam de leve
E lembram arfar de sedas
Só a triste, coitadinha…
Tão triste na minha rua
Lá anda a chorar sozinha …
Eu chego então à janela:
E fico a olhar para a lua…
E fico a chorar com ela! …
Florbela Espanca – Trocando olhares – 23/04/1917
Errante
Meu coração da cor dos rubros vinhos
Rasga a mortalha do meu peito brando
E vai fugindo, e tonto vai andando
A perder-se nas brumas dos caminhos.
Meu coração o místico profeta,
O paladino audaz da desventura,
Que sonha ser um santo e um poeta,
Vai procurar o Paço da Ventura…
Meu coração não chega lá decerto…
Não conhece o caminho nem o trilho,
Nem há memória desse sítio incerto…
Eu tecerei uns sonhos irreais…
Como essa mãe que viu partir o filho,
Como esse filho que não voltou mais!
Florbela Espanca – Trocando olhares – 23/04/1917
Vulcões
Tudo é frio e gelado. O gume dum punhal
Não tem a lividez sinistra da montanha
Quando a noite a inunda dum manto sem igual
De neve branca e fria onde o luar se banha.
No entanto que fogo, que lavas, a montanha
Oculta no seu seio de lividez fatal!
Tudo é quente lá dentro…e que paixão tamanha
A fria neve envolve em seu vestido ideal!
No gelo da indiferença ocultam-se as paixões
Como no gelo frio do cume da montanha
Se oculta a lava quente do seio dos vulcões…
Assim quando eu te falo alegre, friamente,
Sem um tremor de voz, mal sabes tu que estranha
Paixão palpita e ruge em mim doida e fremente!
Florbela Espanca – Trocando olhares – 04/05/1916
Sonhos
Ter um sonho, um sonho lindo,
Noite branda de luar,
Que se sonhasse a sorrir…
Que se sonhasse a chorar…
Ter um sonho, que nos fosse
A vida, a luz, o alento,
Que a sonhar beijasse doce
A nossa boca… um lamento…
Ser pra nós o guia, o norte,
Na vida o único trilho;
E depois ver vir a morte
Despedaçar esses laços!…
…É pior que ter um filho
Que nos morresse nos braços!
Florbela Espanca – Trocando olhares – 12/08/1916
Noite Trágica
O pavor e a angústia andam dançando…
Um sino grita endechas de poentes…
Na meia-noite d´hoje, soluçando,
Que presságios sinistros e dolentes!…
Tenho medo da noite!… Padre nosso
Que estais no céu… O que minh´alma teme!
Tenho medo da noite!… Que alvoroço
Anda nesta alma enquanto o sino geme!
Jesus! Jesus, que noite imensa e triste!
A quanta dor a nossa dor resiste
Em noite assim que a própria dor parece…
Ó noite imensa, ó noite do Calvário,
Leva contigo envolto no sudário
Da tua dor a dor que me não ´squece!
Florbela Espanca – Trocando olhares –
10/08/1916