Marilda Ionta
Ha cartas que nao guardam apenas recados, doencas do figado, frases bem feitas, ha cartas que captam instantes fugidios, fases especificas, mudancas de rota, pontos de conversao da alma, seu genero narrativo possibilita fixar as forcas do devir de uma existencia. Existem cartas de pijama, para usar uma expressao de Mario Andrade, onde as vidas se vivem e a escrita talha o papel com tinta e sangue de projetos, ideias, interesses, sensacoes e sentimentos. As cartas sao objetos lembranca, como afirmou Orest Ranumi e permitem analises interessantes, dentre elas, as estrategias que os missivistas lancam mao para construir-se e reinventar-se para si e para seu destinatario.ii
Henriqueta Lisboa, mulher bonita, de fala nobre e elegante, solteira, sensivel aos 35 anos de idade, entre fevereiro de 1940 e janeiro de 1945, recebeu de Mario de Andrade “o mais belo conjunto de cartas por ele enderecada a uma mulher, ate hoje conhecido”, como escreveu Tele Ancona Lopes.iii No dialogo epistolar da poetisa com o escritor as missivas florescem em suas multiplas formas e usos, ou seja, como espaco de critica literaria, experimentacao artistica e como locus privilegiado de conhecimento de si. Nas missivas do escritor nota-se a busca das maos de uma mulher perdoadeira, alguem para apresentar suas feridas do corpo e da alma. Assim, do lado Mario, a correspondencia enfatiza mais o nucleo confessional que a carta engendra; pois ele faz de Henriqueta Lisboa sua espectadora e confessora. Do lado da poetisa, o campo de experimentacao estetica e mais valorizado, e essa troca epistolar adota as cores de uma correspondencia literaria. Contudo, os missivistas ajustam-se, na medida em que ambos atendem a demanda um do outro, oferecem-se para prazeres e gozos mutuos. Evidentemente, essa troca epistolar nao se resume a uma logica contratual vulgar. Ha nessa correspondencia o que o filosofo Michel Onfray denomina “utilitarismo hedonista”, isto e, a ideia de “que nao existe volupia possivel sem consideracao do outro”, pois o gozo que proporciono encontra em seu caminho o gozo que me proporcionam.iv Nesse dialogo existe simetria e a ausencia de
egocentrismo, pois o escritor le os poemas de sua destinataria com alegria, e Henriqueta ouve Mario com recato e encanto. Ademais, ela aceita a identidade de mulher idealizada que ele constroi a seu respeito, ou seja, ajusta-se a imagem da mulher-santificada, portanto, dessexualizada, como sugerem os esbocos de si mesma que ela elabora em suas missivas. Em carta de 30 de dezembro de 1942, Henriqueta conta-se da seguinte forma:
Sinto que recebi qualquer coisa, nao sei se do sangue ou do espirito – que neste caso teria vindo pelo exemplo. Minha mae e a encarnacao exaltada das tres virtudes teologais: fe, esperanca e caridade. Meu pai e o culto silencioso das quatros cardinais: prudencia, justica, temperanca e fortaleza. O que eu deveria ser! esquisito e incomodo e, para mim, percebe-los tao diferentes dentro em meu ser, pensar como papai e sentir como mamae. Nao vira dai minha determinacao de equilibrio poetico?v
Da fusao que ela elabora entre pai e mae, nasce um idiossincratico mito androgino. Essa imagem da androgenia atrela-se a uma outra igualmente instigante para compreensao do auto-retrato desenhado pela escritora em suas cartas, isto e, a da anacoreta. Diz ela a Mario, a proposito de explicitar sua opcao poetica, “Em verdade pertenco mais a categoria dos anacoretas do que a dos apostolos”.vi Assim, ela se esculpe literariamente como uma figura que pode ser associada a solidao, ao celibato, a virgindade, enfim ao individuo que renunciou a vida social e mundana.
Como se sabe, no imaginario antigo, o deserto era o lugar de habitacao das forcas demoniacas, onde os desejos do corpo e os perigos da sexualidade podiam ser enfrentados pelos anacoretas. Assim, Henriqueta Lisboa apresenta-se como uma mulher que parece estar aprisionada no seio da grande noite, debate-se na escuridao da noite, vive em solos difusos, com contornos indefinidos, como expressa tambem seu famoso poema intitulado “Prisioneira da noite”. Essas caracteristicas e a linguagem religiosa perpassam nao apenas sua obra privada como tambem sua obra publica e, em suas cartas, ela enreda-se no drama da mulher-intelectual, burguesa e crista, problematizando questoes espinhosas entre arte, vida e politica. De acordo com a poetisa:
A capacidade de sofrimento – ainda bem! E o maior fator da capacidade artistica. Pelo menos para a mulher. Entretanto, paradoxalmente, e esta mesma capacidade de sofrimento que mata a intelectualidade feminina. A mulher nao sente tanto a desesperacao da verdade como a necessidade da harmonia. Deverei confessar-me? Nao sou bastante rebelde para sentir-me uma verdadeira intelectual (para isso teria que superar muita cousa, sacrificar muita coisa). Nem sou bastante simples para viver a vida burguesamente como as outras mulheres. Nao sou bastante generosa para renunciar a minha propria personalidade. Nem egoista bastante para pensar unicamente em mim. Poderei ser feliz….Contudo, nao devo queixar-me se a arte tem sido a minha paixao, com a sua coroa de espinho, tambem tem sido meu balsamo, com as suas vozes celestiais…E si eu tivesse de recomecar, escolheria certamente este mesmo caminho. vii
Nessa confissao temerosa, a ex-aluna do Colegio Sion enfatiza que nao se sente rebelde o suficiente para identificar-se como uma intelectual e, tampouco, e conformada com a identidade de mulher burguesa, com um mundo que lhe foi destinado por sua classe social e seu sexo. Como ela se conta, nao era egoista o bastante para pensar unicamente em si e nem suficientemente generosa para renunciar a sua personalidade, ou seja, nao se enquadra totalmente nem nas virtudes cristas nem encarna o culto burgues do eu.
A poetisa problematiza-se com lentes cristas no interior de uma sociedade moderna, em que o individualismo caminha a passos largos. Ela apresenta a Mario a tensao entre os fluxos de forcas da mulher/poeta – ocupada com as questoes do ser – com as poderosas forcas oriundas da mulher/religiosa – atenta aos desejos da carne. Com essa problematizacao de si, ela parece reativar a imagem da anacoreta em um mundo moderno, e essa especificidade leva Henriqueta a adotar procedimentos asceticos cristaos rigorosos que podem ser trilhados nos questionamentos apresentados em suas missivas. Alem disso, ela se auto representa como uma mulher teimosa, persistente na busca de seus ideais e, para conquista-los, ou melhor, para ser fiel a seus desejos, ela nao bate mais o pe como fazia quando era menina, na medida em que, a Henriqueta-mulher parece ter adotado como arte de lidar com a vida a “poetica do sigilo”.viii
Essa poetica – que pode ser associada a arte de calar-se e que sugere uma conduta pautada na prudencia, escuta e silencio – a meu ver, singulariza sua correspondencia e sua amizade com Mario de Andrade. A relacao entre eles aproxima-se do modelo retorico “orelha-boca”, no qual ela fala pouco e ouve muito.ix Como sugerem estas palavras de Henriqueta: “Seria tao bom se pudessemos conversar pessoalmente, de vez em quando, de tudo o que nos interessa e preocupa, sem determinacao ou escolha, eu falando pouco e ouvindo muito[…]”.x
Assim, a fabricacao de si de Henriqueta nas teias da amizade mediante a escrita epistolar parece dar-se pela escuta, silencio e reflexao. Eis o que expressa sua carta de setembro de 1942, onde ela diz a Mario que sabia muito bem o que fazia quando concordava com as criticas do escritor a ela e a sua obra.xi
Cotejando alguns poemas manuscritos enviados a Mario, com os que foram publicados, e possivel notar que em diversas situacoes ela acatou as sugestoes do amigo e em tantas outras ignorou e manteve sua propria versao. Essa atitude fixada por sua escrita intima exibe sua face autonoma, reflexiva e independente e, sobretudo, revela que a poetica do sigilo adotada por ela nao se reduz a um reflexo simples de sujeicao, mas possivelmente estava atrelada a arte da sobrevivencia feminina no espaco publico.
Como registra a historia literaria, a poetisa movimentou-se no espaco publico com grande habilidade, foi uma intelectual ativa e a primeira mulher a ocupar uma cadeira na Academia Mineira de Letras, em 1963. Portanto, a poetica do sigilo adotada em sua correspondencia pode ser lida como uma forma de protecao de si da saturacao do olhar publico. Sua correspondencia exibe um ser impuro, misturado, em processo, que vibra e nao permite enquadramento. Como indicam seus dados biograficos, ela nao se tornou uma monja ou uma freira e tambem nao se entregou ao destino da grande maioria das mulheres de sua classe social, frequentemente fadadas a serem boas maes de familia e a formarem os cidadaos da patria. A sua maneira, ela escapou das identidades sociais ligadas ao Estado e a Igreja.
Nas missivas de Henriqueta encontram-se problematizacoes instigantes sobre a condicao feminina e a producao literaria realizada por mulheres. De modo geral, o conjunto de suas cartas parodoxalmente reativa um modelo de mulher crista que fratura a identidade da passividade feminina. A esse respeito, vale a pena recuperar a critica contundente que ela elabora em sua correspondencia aos criticos literarios brasileiros.
Nos anos 40, ela foi acusada pela critica de fazer uma poesia intimista desvinculada dos problemas sociopoliticos de seu tempo, pois seu lirismo conciso e sofisticado estava distante da poesia social adotada pelos poetas da geracao de 1940. Na condicao de escritora, inserida em um meio intelectual esmagadoramente dominado por homens, Henriqueta adotou uma posicao firme e audaciosa diante de seu trabalho, e respondia de forma lucida as criticas a sua poesia. Como se le na carta de 16 de agosto de 1944, enderecada a Mario de Andrade, cujo teor e o seguinte:
Os que emprestam a arte um sentido revolucionario de classe devem saber que uma revolucao nao se faz de fora para dentro, mas sim de dentro para fora, pela base, partindo de um ponto de apoio que e, no caso, a consciencia humana[…] Enquanto nao nos definirmos ou nao determinarmos a nos mesmos, nao estaremos aptos para avancar no terreno social.// Voce tem razao: nao me sinto chamada a poesia social. Penso mesmo que a mulher so e acessivel o tom menor (como diz Antonio Candido). Mas e possivel que exista uma terceira modalidade poetica, em que o tom menor aprisiona motivos que interessam mais diretamente a coletividade.[…] Quero superar-me sobretudo no terreno essencial, no sentido de charitas.xii
Nesse desabafo epistolar, Henriqueta elabora uma problematizacao bastante sugestiva. Ao dialogar com os literatos arvorados de serem os porta-vozes de mudancas sociopoliticas, com perspicacia, ela pergunta se esses homens, supostamente comprometidos com seu tempo, pararam para indagar se eles se sentiam seres humanos dignos da transformacao que propunham.
Com esse discurso, ela levanta questoes debatidas atualmente por varios intelectuais e, em especial, pelas teoricas feministas, que, enfaticamente afirmam que qualquer especie de
revolucao nao pode mais ser dissociada de uma revolucao da alma. Portanto, a poetisa ressalta a necessidade de (re) conhecermos a nos.
Dentro de seus limites historicos, isto e, aprisionada pela nocao de sujeito essencialista, pela ideia de consciencia como interioridade, enfim, pelas filosofias modernas do sujeito e da consciencia, e se movimentando em um ambiente cristao no interior de uma sociedade dessacralizada, ela poe em pauta as questoes da subjetividade. Como desdobramento dessa problematica, traz a tona a propalada questao da escrita poetica feminina, positivando decididamente o denominado “tom menor”, e, mais do que isso, reivindica a necessidade de ampliacao da discussao sobre o tema.
Para retirar a pecha de intimista e egoica de sua poetica, Henriqueta afirma que deseja superar-se no sentido de charitas. E novamente, a proposito de esclarecer sua obra, ela revela a si mesma, expondo sua teleologia de vida, isto, a vontade de superar-se na direcao do amor caritas. Esse desejo da poetisa tem implicacoes significativas para pensar a singularidade da relacao de amizade que os escritores construiram no espaco dialogico das cartas. Isso porque, o sentido de caritas nao elimina apenas a pecha do intimismo de sua poetica, mas tambem retira o carater suspeito da amizade privada e intima que eles estabeleceram mediante a troca epistolar, ou melhor, da amizade entre um homem e uma mulher. A nocao de caritas busca suprimir o afeto na amizade e, ao mesmo tempo, dessexualiza o amor.xiii Dessa forma, o amor caritas pressupoe eliminar o desejo do corpo do outro, e tambem retira o sentido privado e individualizado das relacoes intersubjetivas. Presumo que, ao se movimentar no interior desse imaginario, a poetisa mineira pode amar Mario com tranquilidade sem as tormentas dos pecados da carne.
Em suas cartas Henriqueta Lisboa apresenta-se como uma escultora, seu instrumento e a escrita epistolar e sua materia-prima e seu corpo e sua alma. Mediante a escritura, ela busca
como os escultores extrair da materia bruta a forma desejada, ou seja, tracar os contornos que ela julgou belo para sua existencia.
i RANUM, Orest. Os refugios da intimidade. In: ARIES, Philippe; CHARTIER, Roger. (Orgs.). Historia da vida privada. Da Renascenca ao seculo das Luzes. Sao Paulo: Cia. das Letras, 1997.
iiFOUCAULT, Michel. A escrita de si. In:O que e um autor? Lisboa: Vega, Passagens,1992.
iii LOPEZ, Tele Ancona. Cartas a Henriqueta Lisboa. O Estado de S. Paulo, Suplemento Cultura, n. 577, 31 ago. 1991.
ivONFRAY, Michel. A escultura de si. Rio de Janeiro: Rocco, 1995, p 144.
v Carta a Mario de Andrade, 30 dez. 1942. Arquivo Mario de Andrade. IEB-USP.
vi Carta a Mario de Andrade, 28 abr. 1940. Arquivo Mario de Andrade. IEB-USP.
vii Carta a Mario de Andrade, 16 ago. 1940. Arquivo Mario de Andrade. IEB-USP.
viii A expressao e emprestada da critica literaria que Fabio Lucas elabora a proposito da obra poetica de Henriqueta Lisboa.
ix Sobre a amizade entre Mario e suas missivistas, ver: IONTA, Marilda. As cores da amizade na escrita epistolar de Anita Malfatti, Oneyda Alvarenga, Henriqueta Lisboa e Mario de Andrade. Sao Paulo: IFCH da Universidade Estadual de Campinas, 2004. Tese de Doutorado. Ionta (2004).
x Carta a Mario de Andrade, 10 dez. 1944. Arquivo Mario de Andrade. IEB – USP.
xi Carta a Mario de Andrade, 7 set. 1942. Arquivo Mario de Andrade. IEB-USP.
xii Carta a Mario de Andrade, 16 ago. 1944. Arquivo Mario de Andrade. IEB-USP.
xiii COSTA, Jurandir Freire. Sem fraude nem favor: estudo sobre amor romantico. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.